Marco temporal volta a assombrar direitos indígenas
Na última segunda-feira (5), ocorreu a primeira reunião da comissão especial de conciliação designada pelo ministro Gilmar Mendes para tratar das ações que envolvem o marco temporal para demarcação de terras indígenas. Durante a audiência, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), maior referência do movimento indígena no país, anunciou que irá avaliar a sua permanência na composição da câmara.
A conciliação foi marcada no bojo de processos nos quais se discute a inconstitucionalidade da Lei nº 14.701/2023. A lei foi parcialmente vetada pelo presidente Lula por razões de inconstitucionalidade e por contrariar o interesse público, mas os vetos foram derrubados em sua quase integralidade pelo Congresso Nacional.
“Pedimos 48 horas para avaliar e decidir, em conjunto com as regionais de base, se vamos continuar compondo a câmara e o cronograma de datas estabelecido por eles”, conta Kleber Karipuna, coordenador executivo da Apib. A próxima reunião da câmara de conciliação está marcada para o dia 28 de agosto.
A primeira reunião da câmara, convocada pelo ministro Gilmar Mendes, foi conduzida pelos juízes Diego Veras e Lucas de Almeida Rosa. Além de Kleber Karipuna, mais cinco representantes da Apib estiveram presentes: Dinamam Tuxá, coordenador executivo da Apib, Maurício Terena, coordenador do departamento jurídico, Kari Guajajara, assessora jurídica da Coordenação das Organizações da Amazônia Brasileira (Coiab), e Eloísa Machado, advogada e especialista em direitos humanos e STF. A deputada federal Célia Xakriabá também estava presente.
Ao longo das seis horas de reunião, o grupo pediu diversas vezes que a Corte concedesse condições iguais de participação para os povos indígenas na câmara de conciliação. Isso porque, a todo momento, membros do STF pressionavam para que as lideranças indígenas aprovassem o calendário de reuniões sem antes poderem consultar suas bases.
As regras e a composição da câmara de conciliação também não contribuem para a participação das lideranças indígenas. Os juízes do Supremo afirmaram que os acordos feitos devem ser realizados por aclamação, mas caso não ocorra consenso entre as partes, as decisões serão tomadas pelo voto da maioria. No momento, a Apib possui seis indicados contra membros do Senado, Câmara dos Deputados, governadores e prefeitos, nos quais a maioria já declarou ser a favor da tese do marco temporal, como os deputados Pedro Lupion e Bia Kicis, indicados pelo presidente da Câmara Arthur Lira.
Também participam da reunião representantes do Governo Federal e de partidos políticos que pedem a constitucionalidade da lei.
“Não estávamos ali para legitimar o processo. Queríamos ser ouvidos! Não há condições dignas de sentarmos à mesa, onde os povos indígenas têm uma arma apontada para a sua cabeça“, disse a deputada Célia Xakriabá. A deputada também repudia a decisão do presidente da Câmara dos Deputados e afirma que não será suplente dos Cabrais do século 21.
Racismo institucional
Pouco antes de a sessão começar, Maurício Terena, junto com outras lideranças que iriam acompanhar a reunião, foram impedidos de entrar no Supremo Tribunal Federal.
“Hoje, na tarde em que o Supremo vai decidir a vida dos povos indígenas neste tribunal, pela segunda vez, estamos sendo barrados. No dia em que não queríamos estar aqui. A presidência ligou e deu a ordem de liberação e seguimos sendo barrados. Esse é o cenário conciliatório da Suprema Corte Brasileira. Estamos cansados”, disse ele.
A entrada do grupo foi aceita após um pedido do ministro Luís Roberto Barroso, presidente da Corte, que pediu desculpas pelo ocorrido na audiência. Essa é a segunda vez que o advogado indígena é barrado ao se dirigir ao prédio do STF para uma agenda. À época, o STF disse em nota que se tratava de um “erro de procedimento pontual”.
Durante a audiência, a advogada indígena Kari Guajajara também disse que as lideranças da Apib estavam constantemente sendo interrompidas e apontou a falta de tradutores indígenas na sala, o que dificulta o debate e o entendimento daqueles que acompanhavam a sessão e não falam português.
“Se continuarmos nesse atropelamento, isso será marcado pela maior violência aos direitos dos povos indígenas do Brasil, como a violação ao direito à consulta, porque eu não posso falar na minha língua originária e não me interessa, com todo respeito, se o problema é da Funai ou MPI. Queria hoje poder me expressar na minha língua originária, pois queria que os mais de 35 mil indígenas guajajara pudessem me ouvir e entender o que está acontecendo aqui. Entender que nossa história está sendo atravessada novamente de uma maneira muito violenta”, ressaltou Kari.
Além disso, o coordenador executivo Kleber Karipuna denuncia posicionamentos controversos por parte do Supremo. Ao indicar que a Articulação dos Povos Indígenas poderia não continuar na câmara, os juízes da Corte afirmaram que a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) poderia aceitar ou não os acordos propostos nas audiências.
“Nos sentimos violados. É um posicionamento que nos remete à tutela do Estado e que foi superado com a Constituição de 88. Essa atitude revela como o racismo institucional está instaurado nas instâncias de poder. A Apib, junto com suas bases, é a verdadeira representante do movimento indígena”, disse ele.
Posição da Funai
A Funai, por sua vez, já solicitou ao STF o reconhecimento da inconstitucionalidade de diversos dispositivos da Lei 14.701/2023 que contrariam o texto constitucional. Para o órgão, tais dispositivos não apenas consolidam a violação de direitos dos povos indígenas, como também dificultam a implementação da política indigenista.
Entre as disposições prejudiciais para a política indigenista, em especial para a política territorial, está a tese do marco temporal, a vedação à revisão de limites de terras indígenas e a fragilização do direito de consulta aos povos indígenas, além de questões procedimentais para a demarcação de terras.
“A sociedade precisa tomar conhecimento do histórico de violações de direitos dos povos indígenas. Quantos povos não foram dizimados por disputa de terras ou expulsos das áreas que tradicionalmente ocupavam sem poder se defender à altura em ações judiciais que retiraram o seu direito à política territorial?”, critica a presidenta da Funai, Joenia Wapichana.
Para Joenia, a demarcação de terras não apenas garante o direito dos povos indígenas, como também contribui para a conservação ambiental em razão das suas práticas ecológicas e tradicionais.
“As terras indígenas são as áreas mais protegidas em relação à degradação ambiental no Brasil. Os povos indígenas são guardiões da floresta. Várias terras demarcadas são verdadeiros cinturões de proteção ambiental em locais que são completamente degradados”, ressalta Joenia Wapichana.
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