A seca avança na Amazônia Legal, afetando 69% dos municípios em 2024
De janeiro a junho deste ano, a ocorrência de seca afetou 69% dos municípios pertencentes à Amazônia Legal, totalizando 531 localidades impactadas, conforme informações disponíveis na análise da InfoAmazonia. Essa avaliação foi elaborada com base no Índice Integrado de Seca (IIS), um sistema gerido pelo Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden), responsável pelo acompanhamento das secas em todo o país.
Tradicionalmente, a Amazônia entra em sua fase de chuvas entre janeiro e maio, mas os dados deste primeiro semestre de 2024 indicam um aumento no número de cidades que enfrentaram seca moderada e severa em comparação ao ano anterior. Este fenômeno sinaliza que a seca na região está mais intensa em relação ao ano passado, quando 309 municípios eram afetados por seca fraca e 126 por seca moderada. Em 2024, os números mudaram drasticamente, resultando em 300 municípios com seca moderada e 170 com seca fraca.
Além disso, houve um aumento alarmante de 56% na quantidade de municípios enfrentando seca severa em 2024, passando de 39 para 61. Os estados mais impactados incluem Amazonas, com 19 cidades, Mato Grosso, com 14, e Rondônia, que contabiliza 10 municípios severamente afetados.
Alterações drásticas no cenário de seca
O município de Santa Isabel do Rio Negro, localizado a 631 km de Manaus, apresentou uma transição de seca fraca no primeiro semestre de 2023 para seca severa em 2024. O autônomo Charlen Ferreira compartilha sua preocupação com a situação, mencionando que, embora o rio ainda não esteja totalmente seco e a compra de alimentos seja viável, já está contemplando a necessidade de estocar mantimentos.
“Aqui não temos aeroporto nem estradas, dependemos exclusivamente do transporte fluvial, e a situação piora bastante durante a seca. Acredito que este ano enfrentaremos uma seca ainda mais severa que a do ano passado. Já estou ponderando em estocar alimentos. No município, temos poço artesiano e também adquirimos água potável em fardos, mas a dificuldade se intensifica quando o rio seca”, relatou Ferreira.
No ano anterior, uma das dificuldades que o município enfrentou foi a escassez de energia elétrica. A Usina Termelétrica local precisa de combustível que é transportado por embarcações, mas isso se torna inviável quando o nível do rio está baixo. O receio é que esse problema sempre se repita: “Realizamos racionamento de energia. Um bairro tinha energia por algumas horas, depois ficava sem para fornecer a outro bairro. Essa rotina foi complexa. Não vejo nenhuma providência sendo tomada para impedir que isso ocorra novamente este ano”, disse Ferreira.
Em outro município, Beruri, localizado a 173 km de Manaus, a situação também evoluiu de seca moderada em 2023 para seca severa em 2024. Os residentes notaram que os níveis dos rios estão diminuindo de forma acelerada e, apesar de ainda conseguirem se locomover pelos rios, o futuro é preocupante. “Muitos moradora de regiões vulneráveis ainda estão se recuperando de um desastre ocorrido no ano passado, onde duas vidas foram perdidas e cerca de 151 pessoas diretamente afetadas, especialmente a comunidade Vila Arumã, que foi devastada pela erosão do solo provocada pela seca intensa”, explica um morador local.
Consequências do deslizamento e recorde de seca
A seca severa em Beruri não tem impedido o tráfego fluvial, mas a situação das moradias é alarmante. Um relatório do Serviço Geológico Brasileiro revelou a existência de áreas de risco nas proximidades da Vila Arumã, que havia sido totalmente consumida pela terra. “Após o evento, surgiram novas configurações na paisagem, deixando amplas áreas de solo exposto suscetível à erosão durante os períodos de chuvas intensas”, descreve o documento.
Uma moradora, identificada apenas como Maria, afirmou que sua família perdeu a casa na vila e atualmente vive na casa de amigos. A intensificação da seca trouxe à tona os traumas do passado. “Para eles, nenhum lugar é seguro. Está sendo uma verdadeira luta conviver novamente com essa seca”, comentou.
Ela compartilhou que sua irmã ainda enfrenta problemas psicológicos após o desastre, padecendo de crises de ansiedade e medo. “Ela não consegue dormir bem, evita sair de casa e vive com um medo constante. A severidade da seca desencadeou deslizamentos que destruíram a vila, e as pessoas perderam suas casas e quase suas vidas,” desabafa, ressaltando a gravidade da situação.
Um contato foi feito com a prefeitura de Beruri e o governo do estado do Amazonas para verificar se as áreas de risco estão sendo desocupadas ou se há planejamento para mitigar os efeitos da seca atual, porém não houve respostas até o momento.
Impacto do El Niño na seca da Amazônia
A condição de seca que predomina no que deveria ser a estação chuvosa na Amazônia é também consequência do fenômeno El Niño, que provocou um aumento da temperatura no Oceano Pacífico ao longo da linha do Equador. Este fenômeno, que prevaleceu de junho de 2023 até junho deste ano,35 reduziu a formação de nuvens e, consequentemente, a quantidade de chuvas na região. A pesquisadora Ana Paula Cunha, do Cemaden, explica que a seca atingiu seus picos em novembro e dezembro de 2023, quando a Amazônia experimentou meses muito secos.
Ainda assim, mesmo após a passagem do El Niño, a seca persiste, devido a chuvas abaixo da média nos meses de junho e julho de 2024. “O Atlântico Norte continua apresentando temperaturas extremamente elevadas desde o ano passado, o que resulta em redução da precipitação nas áreas sul e centro-oeste da Amazônia”, enfatiza o cientista Carlos Nobre.
Com o alerta das comunidades, que já viveram as dificuldades em 2023, a necessidade de ação por parte das autoridades é crucial. Diversas comunidades em diferentes partes da Amazônia enfrentaram isolamento extremo devido à seca, com o rio Negro registrando a menor vazante em mais de um século.
Direções de doze associações de quilombolas presentes nos municípios de Óbidos e Oriximiná, na região oeste do Pará, estão ativas ainda com seca moderada. Elas formalizaram uma solicitação às prefeituras para desenvolver planos de contingência, fornecer equipamentos para armazenamento de água, garantir a distribuição de alimentos e capacitar agentes comunitários de saúde.
“Ainda não estamos no nível crítico de seca, mas a situação já está se deteriorando a cada dia com a diminuição dos níveis de água. A elaboração da carta foi uma tentativa de antecipar os desafios que vivemos no ano anterior,” afirmou Redinaldo Alves, líder da Associação das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Município de Óbidos (ARQMOB). “No passado, muitas comunidades clamaram por água potável, alimentos e remédios. Estamos apreensivos com a possibilidade de um ano semelhante ao de 2023”, completou.
Na última terça-feira (6), o Serviço Geológico Brasileiro revelou que o rio Madeira, que passa pelos estados de Rondônia e Amazonas, apresenta sua cota de 2,07 metros. No ano anterior, essa mesma cota foi registrada em 1º de setembro, quando a seca se intensificou. O menor nível já registrado foi de 1,10 metros, em 6 de outubro do ano passado.
Com o agravamento do padrão de seca, organizações comunitárias têm solicitado a implementação de planos de adaptação. Em Porto Velho, capital de Rondônia, aproximadamente 150 moradores das margens do rio Madeira participaram de uma manifestação para exigir medidas de mitigação em resposta à seca. Os integrantes do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) ocuparam a prefeitura e entregaram documentos solicitando a criação de um “Auxílio Calamidade Climática” de três meses, além de reivindicar a construção de 17 poços artesianos e isenção nas tarifas de água.
Com a mobilização, o MAB conquistou uma representação no Comitê de Crise Hídrica, que anteriormente não contava com a participação de lideranças comunitárias. “Atualmente, o rio Madeira se aproxima de níveis críticos. Comunidades inteiras correm o risco de ficarem isoladas, o que levanta sérias preocupações quanto ao acesso à água. Estamos pressionando as autoridades municipais para que tomem as medidas necessárias,” enfatizou Océlio Muniz, coordenador do MAB-RO.
Segundo o Instituto Jones dos Santos Neves, 15 capitais brasileiras ainda não possuem um Plano Municipal de Mudanças Climáticas, documento fundamental para a gestão e redução de riscos climáticos visando evitar perdas e danos. Na Amazônia Legal, das nove capitais, apenas Rio Branco, no Acre, apresentou um plano até agora.
No momento, o governo federal se empenha na elaboração de um Plano Clima, que deve ser apresentado no próximo ano e se estruturará em duas frentes: mitigação e adaptação. A mitigação visa à redução das emissões de gases de efeito estufa, enquanto a adaptação abrange planos que considerem diversos setores sociais como agricultura, transporte, populações indígenas e saúde alimentar, embora ainda mantenha uma perspectiva nacional.
“Necessitamos urgentemente de planos que tratem da adaptação a desastres, tanto em relação a secas quanto a inundações, em todo o território brasileiro. É imprescindível que esses planos sejam aplicados em todas as esferas de governo, pois as prefeituras são as que lidam diretamente com a realidade local. As ações precisam ser abrangentes e prioritárias nas esferas regionais”, afirmou a pesquisadora Ana Paula, do Cemaden.
Océlio ressaltou que a falta de um plano está atrasando iniciativas que poderiam já estar em prática. “Além da construção de poços artesianos, já seria viável implementar a distribuição de alimentos, produtos para purificação de água e medicamentos para doenças como diarreia. O ano passado foi marcado por um decreto de emergência tardio da Prefeitura de Porto Velho e do estado de Rondônia. Atualmente, estamos preocupados com a urgência das ações emergenciais nas comunidades,” finalizou.
A seguir, os dados utilizados nesta reportagem foram coletados do Índice Integrado de Seca (IIS) do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden) para os municípios da Amazônia Legal referente aos anos de 2023 e 2024. O IIS usa informações dos últimos seis meses, focando nos períodos de janeiro a junho de 2023 e 2024. Esse índice reúne indicadores como o Índice de Precipitação Padronizada (SPI), a Água Disponível no Solo (ADS) e o Índice de Suprimento de Água para a Vegetação (VSWI), entre outros, estimados via sensoriamento remoto, e é classificado em seis categorias: condição normal, seca fraca, moderada, severa, extrema e excepcional.
Esta análise e os dados utilizados podem ser consultados na plataforma disponibilizada na pasta do InfoAmazonia.